JC e-mail 4736, de 29 de Maio de
2013.
Registros raros ou curiosos foram garimpados por
colecionador durante 50 anos. Há, no acervo, vozes raras, como as de Santos
Dumont, Antoine de Saint-Exupéry, Hitler, Washington Luiz, Thomas Edison e
outros. A reportagem é de O Globo
Luiz Ernesto Kawall, 85 anos, é um homem que ouve
vozes. Milhares delas. Podia ser um caso psiquiátrico, mas é só uma história
inusitada. Há mais de 50 anos, Kawall resolveu começar uma coleção: não de
selos, moedas ou cartões-postais, mas com registros da voz humana. O nome?
Vozoteca LEK, as iniciais de seu criador. No total, são cerca de 12 mil
registros, não só com músicas, mas também discursos, entrevistas e depoimentos.
Raridades como as vozes de Santos Dumont, Antoine de Saint-Exupéry, Hitler,
Washington Luiz, Thomas Edison e vários outros. Pensando na posteridade de seu
acervo, Kawall decidiu doar a Vozoteca para o Instituto de Estudos Brasileiros
da Universidade de São Paulo (IEB-USP). A transferência, negociada no ano
passado, acaba de ser concluída. As vozes chegaram à instituição há menos de 20
dias. É o primeiro acervo só de áudio recebido pela universidade, agora
encarregada de preservá-lo e disponibilizá-lo para pesquisadores e o público em
geral.
A USP vai catalogar e digitalizar tudo. O IEB ainda
estuda questões de direitos autorais, mas a ideia é colocar máquinas nos
corredores do instituto, para os visitantes ouvirem a Vozoteca. Para isso, a
instituição estima que serão necessários R$ 500 mil, que espera captar entre
entidades de amparo à pesquisa.
Estranha obsessão
Kawall está eufórico. Desde sempre, seu sonho era
ver a coleção disponível. Um dos fundadores dos museus da Imagem e do Som do
Rio de Janeiro e de São Paulo, ele converteu sua própria casa numa espécie de
centro cultural. Não à toa, recebia estudantes interessados em ouvir vozes - do
além e do aquém. Só ficava assustado com a obsessão de alguns pela voz de
Hitler.
- É aquela voz técnica, cavernosa, horripilante.
Mas potente, insinuante. E muita gente gosta de ouvir, mesmo com tanta Edith
Piaf por aí, que penetra na alma da gente com a voz - diz o colecionador.
Além de museólogo, Kawall é jornalista. Começou na
sucursal paulistana da "Tribuna da Imprensa", depois de conhecer
Carlos Lacerda, dono do jornal. Quando quis concorrer ao governo do Estado da
Guanabara (atual cidade do Rio), Lacerda, que já havia feito fama com seus
discursos inflamados contra Getúlio Vargas nas rádios, convidou o jovem
repórter para trabalhar na campanha.
Quando Lacerda lançou um LP de discursos, em 1960,
deu o primeiro exemplar para Kawall. O funcionário ficou comovido, já que há
tempos era fã da voz do candidato. Pensou, então, que as futuras gerações iam
se interessar por aquilo. A voz de Carlos Lacerda foi a primeira aquisição da
Vozoteca - e até hoje é a sua favorita.
Só uma das vozes ele conseguiu pela internet: Otto
von Bismarck, o chanceler prussiano, recitando poesias e canções. As outras lhe
chegaram por diferentes caminhos. Incluindo amigos e conhecidos que ouviram
falar da Vozoteca e lhe trouxeram gravações de presente.
A voz de Santos Dumont, por exemplo, foi encontrada
pela filha de um amigo em um museu em homenagem aos pioneiros da aviação, numa
cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Trata-se de um discurso de 1929,
quando o Pai da Aviação recebeu a Legion d'Honneur, maior condecoração do governo
francês.
O registro do Barão do Rio Branco também foi
presente de um amigo e também foi encontrado num museu. A voz, gravada em 1906,
corresponde ao pronunciamento do diplomata sobre o Tratado de Petrópolis,
assinado com a Bolívia, que anexou o Acre ao território brasileiro
Já o discurso de Washington Luiz, gravado quando o
ex-presidente voltou ao Brasil após um período no exterior, em 1937, veio de um
sobrinho do político. E a voz de Sigmund Freud, o próprio colecionador
garimpou. Conseguiu que a BBC de Londres lhe cedesse uma entrevista com o
psicanalista gravada em 1938.
- Eu acho a voz do Freud meio mágica. Um dia,
vieram uns freudianos aqui em casa e eles até se deitaram no chão para ouvir.
Fiquei impressionado. Depois, mandei uma cópia para eles - diz Kawall.
Exímio ilusionista, que compra baralhos, moedas e
cartolas e faz truques para os netos e bisnetos, Kawall diz que não vê graça em
escutar vozes sozinho. E cita a gravação que possui de Manuel Bandeira como uma
das melhores para se ouvir acompanhado. É o registro do poeta lendo
"Vou-me embora pra Pasárgada" (1930), com "uma voz confessional,
poética, precisa", segundo o colecionador. Outra de suas prediletas é Tetê
Espíndola imitando a passarada do Pantanal.
Algumas vozes Kawall garimpou em sua vizinhança,
com vendedores da Praça Benedito Calixto, que já o conhecem. Afinal, até poucos
anos, ele próprio costumava comercializar vozes famosas na feira de
antiguidades local. Só cobrava o custo da reprodução. E chegou a mandar carta
para o senador José Sarney, quando era presidente, pedindo a preservação da
memória em áudio do Brasil. O maior sonho de Kawall, afinal, era criar o Museu
da Voz.
O que nasceu sem pretensão foi ficando cada vez
mais sério. Com o tempo, Kawall começou a programar suas viagens para encontrar
vozes raras. Foi assim que parou na sede da ONU, em Nova York, atrás de
gravações de Mussolini, Gandhi e Churchill. Conseguiu todas. Mais tarde, foi
bater à porta da BBC de Londres atrás de um especial sobre os 50 anos do rádio
brasileiro. Saiu de lá com a primeira rádio-novela, "Direito de
nascer", de 1951.
Em solo nacional, o colecionador foi até Juazeiro
do Norte (CE) só para encontrar as vozes de Lampião e Padre Cícero. Conseguiu
apenas um vídeo dos dois. Mudo. Por isso, Kawall aproveita a entrevista para
avisar: se alguém tiver, é só procurá-lo na Praça Benedito Calixto. A busca,
afinal, não termina com a doação do acervo.
Dom Pedro I
Outra curiosidade que ainda motiva Kawall diz
respeito à voz de Dom Pedro I. Ao saber da exumação do corpo, em fevereiro, o
colecionador se animou. Ouviu dizer que os pesquisadores poderiam reconstruir a
caixa torácica, os pulmões e a garganta do imperador e, assim, recuperar o
timbre de sua voz.
- Queria muito saber se era fanhosa, bonita ou
cristalina - diz o criador da Vozoteca.
Agora, com a doação, ele diz sentir "um
alívio". Com a idade avançada, Kawall temia que suas vozes assombrassem a
família quando ele não estivesse mais aqui. Mas ainda não sabe o que fazer com
o vazio de sua sala, agora em silêncio.
(Maurício Meireles / O Globo)
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