Dá um trabalhão. É cada vez mais comum. Corta um pedaço do primeiro
parágrafo, sobe um trecho do segundo. Troca o ‘dizer’ por ‘afirmar’, o
‘amigo’ por ‘colega’, o ‘três meses’ por ‘quase um ano’. Tira o ‘em São
Paulo’ e coloca ‘no Rio de Janeiro’. Acrescenta frases de outro artigo,
distribuídas em blocos distintos do texto. Importa algumas tabelas e
gráficos, para dar mais credibilidade e ficar menos modorrento.
Bate tudo no liquidificador. Agora o ingrediente final: é só substituir o
autor original pelo próprio nome. Está pronto. É só entregar. O
professor nem vai perceber. Mandei bem demais. Duvido que leia todos os
trabalhos. Se for muito zicado e o mala pegar, paciência, digo que, na
correria, imprimi e entreguei o arquivo errado, por engano. Sem querer.
Esse era só o rascunho, a base para o que eu queria escrever. No final,
dá tudo certo. Fica frio.
|
Fonte da imagem: http://ciencianarua.net/precisamos-falar-sobre-plagio/ |
Plágio. Apropriação indevida, antiética e criminosa de trabalho
intelectual produzid0 por outra pessoa e que o plagiador tenta convencer
que é dele. “Não é um crime sem querer, mas um ato deliberado de quem
acredita que não será pego e punido. Não se surrupia uma música ou um
texto de alguém, apagando-se a assinatura de seus autores e registrando
como de sua lavra sem querer, sem intenção. É um crime intencional,
doloso, portanto”, define Rogério Christofoletti, jornalista e professor
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em artigo publicado
pelo Observatório da Imprensa em 2010. Trata-se de sacanagem que se
popularizou entre estudantes do ensino fundamental – grave -, usada por
alunos do ensino médio – mais grave – e também da graduação – muito
grave, e que também já contaminou estudos científicos, não raro feitos
por pesquisadores de renome e reconhecimento internacionais – gravíssimo
elevado à enésima potência.
Em 2011, veio à tona escândalo que envolveu a demissão de um
professor de dedicação exclusiva da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, depois que ficou
comprovado que ele tinha sido o principal autor de um trabalho que
copiou imagens de pesquisas feitas na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) entre 2003 e 2006, sem dar os devidos créditos aos
autores. Em 2014, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) tornou públicos, pela primeira vez em sua história, cinco
casos de fraudes científicas (plágios e fabricação de dados)
registradas, além da USP de Ribeirão, no Instituto de Química da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na Faculdade de Medicina
Veterinária e Zootecnia da USP, na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP e no Centro de Tecnologia da Informação
Renato Archer, em Campinas. Em março de 2013, o jornal “O Estado de São
Paulo” publicou reportagem que alertava: “número de casos de denúncias
de má conduta envolvendo plágio, falsificação e fabricação de dados em
trabalhos científicos cresceu significativamente nos últimos dez anos”.
Não é lenda urbana: figura querida e admirada na área, ex-secretário de
Educação (da cidade e do estado de São Paulo), conhecido pelos muitos
livros publicados (primeiro nome de anjo e sobrenome que começa com CHA e
termina com LITA), foi pego em flagrante pela ‘Folha de São
Paulo’ (matéria de 2012) por fazer autoplágio. De acordo com o jornal,
cerca de 75% da segunda dissertação de mestrado dele (defendida em 1997,
Direito) é uma reprodução da primeira dissertação (1994, Ciências
Sociais). Os dois capítulos principais e a conclusão são idênticos.
A enxurrada estarrecedora de registros de trabalhos plagiados obrigou
a Fapesp, por exemplo, a publicar manual com recomendações para evitar
‘má conduta científica’. É de fazer cair o queixo – dizer para
mestrandos, mestres, doutores, doutorandos e pós- doutores como eles
devem escrever seus artigos, o que é aceitável e o que é indecente e
criminoso. Lembrá-los a respeito daquilo que é estupidamente simples.
Cara pálida, o conhecimento está aí, disponível, cada vez mais
acessível, ao alcance de um clique. Ideias não surgem por geração
espontânea. É preciso dialogar com autores. Essa conversa, no entanto,
precisa ser honesta e transparente. Basta fazer as devidas referências e
citações. Porque o plágio representa dupla mentira – atropela o
autor original, negando o que ele fez e modificando a autoria, para
também enganar o leitor que, numa relação de confiança, acredita no que o
autor (na verdade, outro autor) está narrando para ele. Aos que ainda
tem a ousadia hipócrita de recorrer ao cinismo para tentar justificar a
cretinice e perguntam em tom de deboche desafiador ‘mas onde está
escrito que a gente não pode copiar o autor?’, costumo responder com
um singelo e objetivo ‘bem, já estava escrito na grade do berço que a
gente usou quando bebê’.
É elementar. Tão óbvio que me sinto imensamente ridículo ao escrever
uma crônica com tantas obviedades. Bem… talvez faça sentido. Assim como
se tornou imprescindível e urgente afirmar e reafirmar, em todos os
espaços possíveis, o valor da democracia, a necessidade de combater,
sempre, o racismo, a homofobia e a violência contra a mulher, a
impossibilidade de ser tolerante com a intolerância, é momento também de
agir para não aceitar que a ciência estabeleça pactos com o plágio.
Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão que viveu na primeira
metade do século XX e conheceu de perto os horrores do nazismo e do
fascismo na Europa, já se perguntava: ‘Que tempos são estes, em que
temos que defender o óbvio?’.
É o nosso tempo.
Francisco Bicudo